sexta-feira, 2 de março de 2007

Sino: desconstrutor de sonhos

Odeio despertar. Há pessoas que têm dificuldades em abandonar o sono e necessitam de despertadores muito “potentes”. Também existem os que se disciplinam tanto que despertam sozinhos, diariamente, na mesma hora. Pertenço ao primeiro grupo, com particularidades obviamente, uma delas é o vício no despertador tipo “soneca”. A primeira vez que meu celular toca, um jazz, estou com tanto ódio que nem abro os olhos: tateio o criado-mudo (sorte dele possuir esta deficiência) e aperto o botãozinho. Na segunda badalada já consigo abrir meus olhos, observar pela fresta da janela se haverá ou não sol e, novamente, travesseiro. Somente na terceira vez percebo que suporto a mim mesma e vou para o chuveiro, aliás, percebia: pretérito imperfeito.

Deveria ser perfeito o responsável pelo pretérito acima. Afinal seu som é melhor que o eletrônico produzido pelo meu telefone, além de possuir História, beleza e significância. Ele foi responsável pela regulação do dia-a-dia da humanidade durante muitos séculos. Era ele não só quem ditava o tempo, mas também fazia soar os alarmes, os socorros, lamentava as pestes, acompanhava pesaroso os enterros, cantava nos dias de alegrias como o dia de São Cristóvão (em tempo, do padroeiro da província), registrava também as alegrias da comunidade, a boda da princesa ou uma festa do senhorio. Poderíamos até arriscar responsabilizá-lo pela harmonia social medieval.
Estamos a falar do sino. Quanto ao sineiro, indivíduo tão importante que não era valorizado, preencheremos também algumas linhas. Normalmente era surdo ou corcunda como nos diz a lenda de Notre Dame, além de responsável por tudo nas igrejas, espécie de estagiário de hoje, um “mil e uma utilidades”. O pobre diabo, nunca reconhecido, foi substituído pelo relógio por volta de 1.200. Na verdade a força humana deixou de ser satisfatória à regulação da rotina e se fez necessário desvincular as obrigações diárias da vontade do padre e do sineiro.

Para lembrar Karl Marx, analisemos que a chegada dos ponteiros permitiu um controle melhor da produtividade nas fábricas, eles vieram na mesma época da Revolução Industrial. Isto deve ter sido como um xeque no tabuleiro da guerra entre a Igreja e a burguesia. Agora, os sinos pertenciam a outro tempo, o das orações e preces, bastante distinto do preciso e real dos monumentais relógios que foram construídos, como exemplo podemos citar o Big Beng. Assim, cada vez mais as fábricas ocupavam os lares, e os relógios de parede, a partir de 1.500, tomavam o local dos santinhos. Da mesma forma como a Igreja deturpou e levou ao esquecimento regiões pagãs anteriores à ocupação romana, o tempo, que agora é dinheiro, está não só invadindo os pulsos como levando os sinos e a religião para “Avalon”.

Voltemos ao assunto, eu percebia meu despertar aos poucos: pretérito imperfeito. O problema é que a Igreja central de meu município decidiu que ainda pode controlar os indivíduos. Até os profissionais liberais, que se achavam livres do desconstrutor de sonhos, agora possuem um enorme e barulhento despertador. O sino da igreja toca pontualmente as 5:30 h impondo aos livres o tempo da Igreja Católica Apostólica Romana, felizmente cada vez mais extinto. Impressionante como mesmo agonizando, Ela ainda consegue infernizar os homens de boa vontade.


Natal – Fernando Pessoa
O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Por seres tão inventivo e pareceres contínuo/Tempo Tempo Tempo Tempo/És um dos deuses mais lindos - Caetano Veloso – Oração ao tempo

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei.

Dayani Guero disse...

Valeu! Também gosto dele, é engraçado!