segunda-feira, 26 de maio de 2008

Blindness

Onde não há nomes. Onde a grandiosidade dos personagens existe pelas atitudes, lá onde enxergamos a essência da razão humana, se é que a mesma deveria ser qualificada desta forma, sobretudo já que somos nós quem assim a chamamos: outrora fosse outra espécie que questionasse sua significância. Humanidade, o animalismo a acompanha.

Ser anti-humano. Tão simples como apertar o gatilho ou virar o pescoço ao ver uma família esfomeada é ser instinto. Instinto não vê, nem ao menos enxerga. Instinto cheira, lambe, morde e engole, melhor se rumina. O polegar opositor e o cérebro altamente desenvolvido possibilitaram a construção de muitas coisas, vivas ou mortas. Essas, cercarmo-nos de ilusões. As elucubrações nos fazem esquecer, ou ainda não lembrar que sem comida, água para beber e limpar, nem ao menos ao mérito de conviver com os cães e gatos, que se sentiriam por demais evoluídos ou ainda civilizados para nos ter como companhia. Sem visão então, a cara contra o muro! O personagem cão-humano desta vez é o cão das lágrimas: quase Baleia, Achado e Manoel.


Por que costumamos fofocar, intrigar ou destacar os defeitos alheios? Pela cegueira interna. Essa também inclui a paquera com o babaca, os cumprimentos acalorados para poucos, e a mania de transferir aos demais nossos traços inconscientemente irritantes. Oro, peço, canto e grito. Costumo clamar pelas pessoas amigas: desejo crescer. Meu comportamento continuamente em evolução de forma que cada vez com mais clareza aquilo que no primeiro parágrafo foi caracterizado por razão e agora receberá como palavra designadora espírito. Enfim, que desenvolva com percepção em longo prazo, ainda que míope.


Falávamos do livro: Ensaio sobre a cegueira de Jose Saramago rendeu um maravilhoso romance e um filme cuja minha expectativa é ótima, o que contraria as críticas do mundo virtual, já que para o real me faço de cega e surda também. Foi dirigido por Fernando Meirelles e abriu o Festival de Cannes. A foto acima é dele, nome: Blindness

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Fome

Cozinhar é definitivamente uma terapia. Dormi tarde depois de mais uma das inúmeras noites em que eu e amigas decidimos sair com a esperança de que não estamos em uma cidade do interior onde nada de lucrativo irá acontecer e o resultado sempre será apenas a ressaca. Independentemente da ressaca, prometi, no feriado municipal, strogonoff.

Iniciei picando o filé e o começo foi o responsável pela melancolia que acompanhou o cardápio. Alguém que decidiu que o filé era a carne mais barata depois de uma longa viagem sobre custos e benefícios do mesmo: a nostalgia tem nome, sempre. Houve quem acreditasse que muito alho caracterizaria menos a maciez da carne naquele instante, mas o sangue escorreu. Tentei picar a cebola. Piorou. Lágrimas vieram com a intensidade que só as cebolas mais novinhas sentem ao perceber que nem sempre a “morte os separe” e também tão longas quanto às das menos jovens ao perceber o quão eterno é o amor, e incondicional também: separação.

Entram nesta fase o pimentão e o tomate, tomates não verdes picados, que darão à fritura a possibilidade de cozer, que alívio! Decido trocar o cd. Incluo mais alguns ingredientes e vem a etapa da prova. Lembranças de provas passadas, a colher de pau, molhos e sopas quentes a queimar as mãos e lábios, lábios que tantas vezes nos mataram a sede, da água, do desejo, da paixão, da loucura causada pela ausência do corpo alheio ao qual tantas vezes desejamos ser nosso, único, uno.

Nesta altura lembro-me da seleta de legumes, picados, do cogumelo o qual só entende o tempo dos fungos, aquele que proporciona a quase ausência de odor, sabor e cor (leia-se dor), mas traz uma lembrança tão grande do período de esporulação e adaptação que se transformam na intensidade da memória genética a qual transforma o sabor do prato de forma estonteante. A brancura dos mesmos trouxe, como que num processo de osmose, a urgência do creme de leite e mais ainda da consistência do catupiry.

Os olhos embebidos e o sal percebido pela língua desejaram queimar. Foi com conhaque que a chama se fez, e à mesa se serviram todos os sentimentos dos últimos nove anos. Alguns ingredientes foram esquecidos ou apenas não descritos.

Eu vejo que aprendi
O quanto te ensinei
E nos teus braços que ele vai saber
Não há por que voltar
Não penso em te seguir
Não quero mais a tua insensatez
O que fazes sem pensar aprendeste do olhar
E das palavras que guardei prá ti
Não penso em me vingar
Não sou assim
A tua insegurança era por mim
Não basta o compromisso
Vale mais o coração
Já que não me entendes, não me julgues
Não me tentes
O que sabes fazer agora
Veio tudo de nossas horas
Eu não minto, eu não sou assim
Ninguém sabia e ninguém viu
Que eu estava a teu lado então
Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher
Sou minha mãe e minha filha,
Minha irmã, minha menina
Mas sou minha, só minha e não de quem quiser
Sou Deus, tua deusa, meu amor
Alguma coisa aconteceu
Do ventre nasce um novo coração