terça-feira, 28 de abril de 2009

Tradição

"É MAIS FÁCIL DESINTEGRAR UM ÁTOMO DO QUE UM PRECONCEITO"
(Albert Einstein)

Dancei um baile gaúcho com o conjunto “Os Serranos” e me emocionei muito, acredito que pelo fato de que, depois de tanto tempo morando em Mato Grosso, praticamente já havia esquecido o quanto sou apegada à cultura sulista. A música e as pilchas me remeteram a um passado de CTGs, danças e poesias. A nostalgia tomou conta de mim a ponto de recordar-me de quando eu guria, mas já me sentindo “adulta”, ainda não gostava do amargo do chimarrão e o engolia, apenas para participar da roda de conversas tradicional no final da tarde e, é claro, aproveitar para roubar um cafuné.

Ao decorrer do fandango, de excelente qualidade musical, fui sentindo-me mais uma vez arraigada à cultura gaúcha por inteiro, mais que apenas ao futebol e ao mate (que ainda são presentes no cotidiano). O problema é que minha consciência das culpas e erros intrínsecos nas tradições foi despertada por diversas vezes, com auxílio do Serrano Edson Dutra e seus comentários: piadas contra o homossexualismo (mais especificamente contra homens que usam brincos, "afeminados"), a afirmação de que Graças a Deus os presentes não têm crianças especiais, mas que devem contribuir para a APAE e elogios ao nosso excelentíssimo prefeito, que segundo ele, só é “bem falado” na cidade. Acreditar que ter filhos especiais é um castigo divino é tão ignorante quanto pensar que a administração municipal é perfeita e reta. Meu problema com tradição é esse: ela nos cega, de forma que nos tornamos preconceituosos e elitistas sem que nos demos conta disso. Há uns dias atrás um grande amigo (matogrossense e homossexual) comentou que quando me conheceu eu era mais elitista e parei para analisar que também era mais tradicionalista naquela época.

Tradição vem do latim “entregar”, melhor traduzida como transmitir. Ela se baseia em dois pressupostos: o de que as pessoas morrem e o de que há necessidade de um nexo de conhecimento entre as gerações. Assim, as crenças, costumes e valores de um povo são seguidos conservadoramente e com respeito através das gerações. Moral deriva do latim mores, que significa "relativo aos costumes". "Moral" não traduz, no entanto, por completo, a palavra grega originária êthica. É que êthica possuía, para os gregos, dois sentidos complementares: o primeiro derivava de êthos e significava, numa palavra, a interioridade do ato humano, ou seja, aquilo que gera uma ação genuinamente humana e que brota a partir de dentro do sujeito moral. Por outro lado, êthica significava também éthos, remetendo-nos para a questão dos hábitos, costumes, usos e regras, o que se materializa na assimilação social dos valores. A tradução latina do termo êthica para mores "esqueceu" o sentido de êthos (a dimensão pessoal), privilegiando o sentido comunitário da atitude valorativa, da mesma forma que a tradição sulista nos exige um padrão de comportamento “moral” único, que permite uma identificação praticamente imediata.

Através de erros e acertos os indivíduos e até mesmo as sociedades estabeleceram comportamentos ideais, morais e os repassaram a seus descendentes que não sabem a origem dos mesmos. Exemplo da construção desses paradigmas:

Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, no centro uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jacto de água fria nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros o batiam nele. Passado mais algum tempo, nenhum macaco subia a escada. Então, os cientistas substituíram um dos cinco macacos. A primeira coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo rapidamente retirado pelos outros, que o surraram. Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo não mais subia a escada. O segundo foi substituído e assim sucessivamente até que o último dos veteranos foi substituído. Os cientistas ficaram, então, com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam batendo naquele que tentasse chegar às bananas.
Para que possamos entender melhor a crítica à moralidade, podemos citar a Genealogia da Moral, de Nietzsche, a qual tece uma crítica à moral vigente a partir do estudo da origem dos princípios morais que regem o Ocidente desde Sócrates. Para ele há duas classes: a dos senhores e a dos escravos. A classe senhorial divide-se em guerreira e sacerdotal. A classe sacerdotal deriva da primeira, e define-se pela impotência, inventando assim o espírito, enquanto que a classe guerreira pratica as virtudes do corpo. As duas classes são rivais. Desta rivalidade surgem duas morais: a dos senhores e a dos escravos, já que a casta sacerdotal mobiliza os escravos (os débeis e enfermos) contra os guerreiros, que são a classe dominante. Esta mobilização é possível pela inversão dos valores, criando uma moral escrava, que tem início com o povo judeu, e é herdada e assumida pelo cristianismo. Somente desta maneira o sacerdote consegue triunfar sobre o guerreiro. Os débeis, segundo o autor, transformam a impotência em bondade, a baixeza em humildade, a covardia em paciência. Dizem que sua miséria é uma prova, uma bem-aventurança, uma eleição. Introduzem a idéia de culpa, mas eles mesmos são inocentes. Sua obra-prima é a idéia de justiça: eles são os justos e odeiam Nietzsche critica a moral como uma contra-natureza, que é a moral da tradição cristã e socrática; a moral platônico-socrática; a idéia de uma ordem moral do mundo; e que nega a vida, justificando-se em deus. Tais aspectos da moral são, para o autor, um passo da humanidade para trás.

Há muitos passos para trás na tradição sulista (aliás, em todas as tradições), entre eles o preconceito racial, ainda muito presente, a discriminação com o homossexualismo e também com sexo feminino, já que a liberdade da mulher é extremamente podada para que a mesma possa efetivamente representar uma prenda para seu gaúcho. São hábitos morais que sempre questionei e que acho que devem ser mais bem analisadas pelos conservadores para que haja efetivamente uma construção de valores reais e úteis na sociedade atual. Só sei que não irei lavar a louça, bordar, obedecer a uma ordem ridícula de uma pessoa mais velha e muito menos desprezar os homossexuais sem me questionar o porquê desses comportamentos.