sexta-feira, 16 de maio de 2008

Fome

Cozinhar é definitivamente uma terapia. Dormi tarde depois de mais uma das inúmeras noites em que eu e amigas decidimos sair com a esperança de que não estamos em uma cidade do interior onde nada de lucrativo irá acontecer e o resultado sempre será apenas a ressaca. Independentemente da ressaca, prometi, no feriado municipal, strogonoff.

Iniciei picando o filé e o começo foi o responsável pela melancolia que acompanhou o cardápio. Alguém que decidiu que o filé era a carne mais barata depois de uma longa viagem sobre custos e benefícios do mesmo: a nostalgia tem nome, sempre. Houve quem acreditasse que muito alho caracterizaria menos a maciez da carne naquele instante, mas o sangue escorreu. Tentei picar a cebola. Piorou. Lágrimas vieram com a intensidade que só as cebolas mais novinhas sentem ao perceber que nem sempre a “morte os separe” e também tão longas quanto às das menos jovens ao perceber o quão eterno é o amor, e incondicional também: separação.

Entram nesta fase o pimentão e o tomate, tomates não verdes picados, que darão à fritura a possibilidade de cozer, que alívio! Decido trocar o cd. Incluo mais alguns ingredientes e vem a etapa da prova. Lembranças de provas passadas, a colher de pau, molhos e sopas quentes a queimar as mãos e lábios, lábios que tantas vezes nos mataram a sede, da água, do desejo, da paixão, da loucura causada pela ausência do corpo alheio ao qual tantas vezes desejamos ser nosso, único, uno.

Nesta altura lembro-me da seleta de legumes, picados, do cogumelo o qual só entende o tempo dos fungos, aquele que proporciona a quase ausência de odor, sabor e cor (leia-se dor), mas traz uma lembrança tão grande do período de esporulação e adaptação que se transformam na intensidade da memória genética a qual transforma o sabor do prato de forma estonteante. A brancura dos mesmos trouxe, como que num processo de osmose, a urgência do creme de leite e mais ainda da consistência do catupiry.

Os olhos embebidos e o sal percebido pela língua desejaram queimar. Foi com conhaque que a chama se fez, e à mesa se serviram todos os sentimentos dos últimos nove anos. Alguns ingredientes foram esquecidos ou apenas não descritos.

Eu vejo que aprendi
O quanto te ensinei
E nos teus braços que ele vai saber
Não há por que voltar
Não penso em te seguir
Não quero mais a tua insensatez
O que fazes sem pensar aprendeste do olhar
E das palavras que guardei prá ti
Não penso em me vingar
Não sou assim
A tua insegurança era por mim
Não basta o compromisso
Vale mais o coração
Já que não me entendes, não me julgues
Não me tentes
O que sabes fazer agora
Veio tudo de nossas horas
Eu não minto, eu não sou assim
Ninguém sabia e ninguém viu
Que eu estava a teu lado então
Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher
Sou minha mãe e minha filha,
Minha irmã, minha menina
Mas sou minha, só minha e não de quem quiser
Sou Deus, tua deusa, meu amor
Alguma coisa aconteceu
Do ventre nasce um novo coração

3 comentários:

Fernando Malheiros Dal Berto disse...

Concordo, cozinhar é definitivamente uma terapia. Para homens com más resoluções, me incluo, chorar com cebolas é perfeito. Não há crime nem vergonha, é lícito homem chorar com cebolas. Perfeito ainda mais é um fortaleza feminina admitir lágrimas que ultrapassaram as benesses da cebola.

Anônimo disse...

Li num livro que acabei de terminar que a crônica é a mais brasileira das formas de arte literária. De fato, temos um extenso rol de ótimos cronistas dentre eles o próprio Drummond que adoro como poeta. Há algum tempo tenho buscado um jeito de aproximar minha prosa, campo pelo qual agora me aventuro, da poesia com a qual já estou mais familiarizado. Nessa busca, percebi que a essência da crônica, ou melhor da boa crônica, é justamente essa: juntar prosa e poesia. Deve ser por isso que Drummond, fora poemas, apenas escreveu crônicas. Disse-lhe que incontestavelmente você tem preferência por elas, com o que você concordou. Não sei se você cai bem nelas ou elas lhe caem bem, mas seu canal de expressão está ai. Leve a sério, leve adiante. Sinto-me um pouco solitário em minha própria obstinação. Amor não basta. Chega de diletantismo. Você tem condições pra alçar vôos maiores.

Dayani Guero disse...

Fer, a fortaleza está em processo de desconstrução.

Tony, não estou tão obstinada, mas sinto-me mto honrada, mais que recebendo uma crítica de \Veja, certamente.

Bjos aos dois.