terça-feira, 21 de julho de 2009

Tempo III

Abaixo contribuição de um querido amigo à temática tempo: Tony Cleber dos Santos


AS PIRUETAS DE SATURNO COM SEUS MALABARES

“(...)Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”

( Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas)

Às vezes, me ponho a lembrar-me de mim mesmo nos meus gostos, minhas visões, fantasias e opiniões como eram nalgum ponto pretérito, para meu espanto e íntimo deleite de tê-las como hoje não são. Esforço-me por recuar muito longe, até quando, pequenino, duvidando da minha própria existência, como se sofresse encosto de algum filósofo racionalista do século XVIII, me beliscava em tardes avulsas, estateladas no meio da semana. Olhava para o céu, para o chão e sabia que eu estava, mas me indagava se era; não sabia se o chão firmava - o que, afinal firmaria o chão? -, ou se, caminhando até o horizonte, as nuvens podia alcançar. Quase completamente possuído pelo tal demônio filosófico, concluía que a beliscada doía mesmo.

Lembro-me de como adorava feijão e de como, hoje, esse prato me é indiferente. Também me lembro que fui socialista camaradinha dos camaradas dos DCEs e de como passei por algumas variantes quase heréticas de pensamento político, sem jamais ser nazista, diga-se. Hoje sou constitucionalista; mais um auto-rótulo para administrar tanta mudança. Por que mudamos assim? Por que mesmo varrendo-nos a pó todos os dias pela porta de nossas casas ainda ousamos atender à mesma alcunha? Pelo menos a mim, não deixa de ser estranha a idéia de mudar e mudar, e trocar de pele, cabelo, e alma, pois me parece que de alguma forma compramos a idéia de que há uma essência de ser e também a de que existe um ponto de amadurecimento. Mas quando é que chegamos a esse ponto? Espero que não seja na hora de cair do pé....
Ademais essas pequenas mudanças que dão sabor à existência, podemos pensar que tanta camaleonice pode ser indício de falta de princípios. Para rebater essa possível autocrítica, sempre imaginamos, em benefício de nossa própria imagem, que nossas variações nos conduzem a uma evolução, a um aprimoramento do espírito, da inteligência ou da sensibilidade. De fato, observo que não mudamos ao sabor das conveniências. Habitamos nossas crenças; são a base de nossa existência. No entanto, sabemos apenas porque muda o camaleão.
Obviamente, não estaria aqui gastando as pontas dos dedos se não enxergasse um problema nisso. A questão, porém, é que esse problema não está nas mudanças que por mais espantosas que sejam, sempre estiveram na ordem do dia e, de certa maneira, ou a elas nos resignamos ou criamos a ilusão de que somos sempre os mesmos. O que nos intriga é como podemos manter identidade mediante tantas mudanças, de que forma eu ainda sou o menino que gosta de feijão. O que tudo isso significa, a que conduz? Há, de fato, uma evolução de nosso desenvolvimento, um aprimoramento moral, um amadurecimento? Se assim é, como pode ser que eu – homem feito - posso ainda mudar, e até retroceder? Na verdade, de todas as indagações, é essa última a que mais cansa.
Freud, Piaget, Vygotski; nenhum desses eminentes pensadores, na narrativa desse desenvolvimento, vai muito além da adolescência, que, nessas teorias, termina por ser a última edição, aquela em que o ser está pronto para o mundo, seja por já ter suas funções reprodutivas amadurecidas, seja por já poder compreender e elaborar conceitos abstratos e executar funções mentais superiores e com isso adquirir um bom nível de sociabilidade e senso de responsabilidade. Além disso, se for aplicado e estudioso, terá um selo do Ministério da Educação.
No entanto, o caniço pensante segue seu caminho solitário em sua busca de si, de um sentido, um conforto, um sentimento de estar no lugar certo, de maneira que nunca estamos maduros até que tombemos do galho. Parece-me muito mais sábia a noção, expressa pelo defunto autor machadiano, de que nossa última versão é a que a terra consome. A vida, em suas múltiplas estações, nos molda, burila, e encera, até que, com ou sem surpresa, vem a sinistra nos fotografar a feição desenhada no último hausto, na última descarga neural.

A vida, o tempo... O que nos fascina é essa dimensão de ser que não é apenas duração. Qual é o princípio ativo do tempo? Quem não toma desse remédio?

Todas as nossas angústias provêm da recusa do tempo. Resistimos a ele porque o tempo sempre exige de nós uma atitude que, geralmente, contraria a disposição que trazemos no âmago. Isso ocorre em todas as fases de nossa vida, desde o nascimento até a morte.
Tenho carregado essa reflexão comigo pelos últimos três anos, desde quando percebi em mim uma mudança na percepção das coisas, mudança tão repentina e radical como quando, por volta dos dezoito anos, senti que se fosse para viver uma vida inautêntica não valeria a pena viver, e assim passei a me construir, a tecer a minha existência pautado por esse princípio. Aos vinte e um, eu era a própria bandeira tremulando loucamente: Derrube os muros!
Aos dezoito ocorreu-me o prenúncio de uma transformação muito significativa para mim. A matemática mística dessas “private copernican revolutions” nos ensina que era a crise dos vinte e um, crise da auto-afirmação. Todas as crises são marcadas por prenúncios que culminam no paroxismo da própria crise. Os auges podem ser registrados com maior ou menor precisão num ciclo de sete anos, segundo a teoria das crises setênicas. O que começou aos dezoito culminou aos vinte e um anos com a consolidação de uma independência financeira que trouxe a sensação de que tudo podia alcançar e que deveria abraçar a vida e dela esgotar as possibilidades, transformando-a na busca incessante da experiência totalizante, que no fundo é ânsia de morte. Simples assim. Freud.
Nessa fase, quer se conhecer os dois lados de tudo, e para conhecer a Deus não se hesita em invocar Satã, para se obter prazer, não se cansa de desafiar a dor. Poucos são aqueles que extraem as vantagens dessa fase, por estarem muito ligados a preconceitos e moralismos que lhe tolhem essa capacidade. O trânsito entre os opostos propicia um ponto de vista privilegiado àquele que souber tirar proveito disso, além de possibilitar maior autoconhecimento por meio da diversidade de experiências a que se expõem. Quando isso me ocorreu, trazia a vantagem de as bases da minha vida adulta estar firmadas e a consciência de que havia pessoas sobre as quais eu tinha responsabilidade, a qual assumi plenamente. Não coloquei isso como obstáculo a consecução dos meus objetivos. Auto-afirmação. Lembro-me até hoje do dia em que percebi isso. Liguei para uma amiga que havia conquistado quando inaugurei minha vida autêntica e disse com profundo alívio que havia solucionado, dentro de mim, um dilema. Faltavam poucos meses para completar vinte e um anos. O ciclo, portanto, havia se fechado e eu estava pronto para me assumir com um ser humano em busca da auto-realização, em busca da felicidade.
Entretanto, o tempo transcorre e o ser percebe-se sempre de forma diferente no tempo: não tarda para que o desafio lançado à dor mostre sua outra face: a obsessão, o desatino, o absurdo. Vê-se que não dá para mascarar a dor com falsos riso, ( na verdade, gritos de desespero), pois sente-se que se lança numa busca que parece cada vez mais distante...Tudo é dor. Cansa-se da superficialidade, começa o existencialismo. Percebi o início disso por volta dos 25 anos. Mais uma vez, o prenúncio precede a crise em três anos. Nessa fase, a experiência mais profunda pode ser a do pensamento, de modo que muitas pessoas podem mudar suas opiniões políticas, religiosas, seus hábitos, pois coloca em cheque toda a base que orientou sua ação até então, não raro o pensamento pode dar giros indo-se de A a Z para voltar a A novamente. Essa inquietação é sintoma do questionamento radical de si e das coisas que se leva a efeito nessa fase. O sentido de tudo isso é um só: alçar-se acima da dor. Essa fase que se estende dos vinte e cinco até os 28, quando se dá a revolução de saturno, o “novo nascimento”, é crucial, pois todo um ciclo cármico se fecha. É onde estou agora. Tenho vinte e oito. Mas alguns ainda dizem que somente quando se chega aos vinte e nove e se sai dessa zona nebulosa é que podemos enxergar com mais clareza tudo quanto se passou. Como naquela letra de Renato Russo numa música da Legião.

Perdi vinte em vinte e nove amizades
Por conta de uma pedra em minhas mãos
Embriaguei morrendo vinte e nove vezes
Estou aprendendo a viver sem você
Já que você não me quer mais
Passei vinte e nove meses num navio
E vinte e nove dias na prisão
E aos vinte e nove com o retorno de saturno
Decidi começar a viver
Quando você deixou de me amar
Aprendi a perdoar e a pedir perdão
E vinte e nove anjos me saudaram
E tive vinte e nove amigos outra vez

Ainda que a razão de tudo isso não seja um louco astro da via láctea dando piruetas e equilibrando vinte e nove malabares, podemos sentir em nós esse desabrochar de uma nova pessoa, essa moção que nos abate e fortalece, tornando-nos algo curioso para nós mesmos.

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